Mauricio Lima vem construindo uma carreira bastante rara dentro da fotografia brasileira. Jovem, com 39 anos, e comprometido no que se propõe a realizar, nesses 15 anos de carreira coleciona dezenas de prêmios, todos internacionais, especialmente em longas reportagens para o The New York Times. Em 2014, passou seis meses no leste europeu, na documentação do conflito russo-ucraniano que teve início em fevereiro de 2014 com o fim dos protestos em Maidan, centro de Kiev, e logo se alastrou por toda a região de Donetsk e Luhansk, leste do país. 

O ensaio “Fragmented – The Human Cost of War in Ukraine” acaba de receber duas menções honrosas: uma no Pictures of the Year International e outra no Best of Photojournalism, ambas nos EUA e é o único trabalho brasileiro finalista do prestigioso Leica Oskar Barnack Award 2015, na Alemanha. O ensaio na Ucrânia também foi agraciado com o primeiro lugar na segunda edição do francês FIPCOM. Com isso, duas exposições internacionais acontecerão a partir de setembro: a primeira em Paris, no Instituto do Mundo Árabe, e em seguida em Fujairah, nos Emirados Árabes. Além disso, um ensaio sobre a pesca sustentável do pirarucu na Amazônia recebeu medalha de bronze no China International Press Photo Contest há duas semanas. De passagem por São Paulo, Mauricio Lima conversou com a DOC, que o representa no Brasil. 

DOC: Por que a Ucrânia e como surgiu a necessidade de ir para lá?
ML: Pela curiosidade na história da região na época da União Soviética e por fortes imagens dos protestos em Kiev que me remetiam a cenas da Primeira Guerra Mundial. A nossa obrigação é estar presente, é preciso testemunhar certos fatos da história com os próprios olhos. Fui por minha conta após um trabalho no Afeganistão. Em menos de uma semana, apareceram propostas de trabalho.

DOC: Fale um pouco do seu dia-a-dia ao fotografar a guerra.
ML: Sempre busco traçar um paralelo entre a vida cotidiana e as nuances de um conflito que vão além de fotos de combate. Isso é esperança, me remete a um desejo de mudar uma realidade. A partir daí, o processo demanda tempo e percepção até você conseguir entender o ritmo das pessoas, estabelecer confiança recíproca e ser aceito. O tempo passa, pessoas se vão com uma naturalidade inaceitável e a dor demanda uma decisão. Num determinado momento, tentamos intervir com outros colegas para evacuar civis de bombardeios diários. Daí você escuta da representante da ONU para direitos humanos que isso demanda decisões de Kiev junto ao exército e que suas fotos publicadas em um veículo sério e de grande repercussão já são suficientes para dizer o que ali ocorre. Algumas vezes sinto que não. Era realmente angustiante.

DOC: Qual o cenário atual próximo à fronteira com a Rússia?
ML: Ainda tenso. Converso diariamente com as intérpretes que estiveram comigo. Aparentemente, o cessar fogo é teórico, ou seja, o cenário é ainda incerto. Combatentes da auto-proclamada República Popular de Donetsk, que recentemente conquistaram boa parte do território controlado pelo exército Ucraniano, relutam em baixar as armas porque percebem que a estabilidade na região, infelizmente, está distante do presente. Devo retornar para lá em breve.

DOC: E o episódio que envolveu a ucraniana Irina Dovgan e o ‘fotógrafo brasileiro que ajudou a salvá-la’, que foi amplamente divulgado no Brasil? Qual sua reflexão sobre o ocorrido?
ML: De que, muitas vezes, é fundamental deixar se surpreender pela fotografia. Foi algo inimaginável até me deparar com aquela cena, não ser expulso dalí e, mesmo descrente da humilhação, conseguir raciocinar em fração de segundos a importância de estar presente diante dela e fazer o que costumo fazer. Impensável até ouvir que a fotografia pôde contribuir diretamente para algo positivo na vida da dona de casa e ativista Irina Dovgan. Esse é o maior prêmio que a fotografia pode nos contemplar como ser humano. Ao menos uma noite feliz tive em Donetsk durante meses.

DOC: Você era amigo do jornalista James Foley e não deve ter sido fácil ver um amigo sendo decapitado pela internet, e toda a sequência de atrocidades perpetradas pelo Estado Islâmico. Isso muda alguma coisa na sua vida?
ML: Não sei se muda. Você lida com a intuição a cada momento. A dor alheia também nos pertence, nos atinge, a partir do momento em que você é aceito nessa circunstância. Agora, quando isso acontece com alguém que um dia fez parte direta do seu cotidiano, a dor é profunda, perdura e reluta em dissipar.  O ser humano tem provado que não há limites para ser bárbaro e cruel consigo próprio, por motivação política, religiosa e até futebolística, no nosso caso. Entretanto, é muito duro compreender que uma pessoa que carrega consigo uma câmera e um simples desejo de contar histórias mereça ter a cabeça desintegrada do próprio corpo como fim. Foi muito duro. 

DOC: Você está desenvolvendo algum trabalho autoral, paralelamente ao trabalho para o The New York Times?
ML: A fotografia em si já é autoral e faz parte de um projeto de longo prazo, de documentação de sociedades afetadas por conflitos. Tenho total liberdade para expressar meu ponto-de-vista quando faço trabalhos para o NYT, e isso contribui muito. É um privilégio, de fato. O que mudará no futuro será a compilação do trabalho, quando isso ganhar um corpo. O ponto final de cada ensaio deve ser sempre o livro. É isso que fica, que perdurará, como obra reflexiva e documento pessoal. Quando isso vai acontecer e como é difícil estabelecer porque demanda tempo, algo escasso há anos.

DOC: Esses prêmios importantes que você vem colecionando há mais de uma década também têm essa mesma relevância?
ML: Encaro isso como reconhecimento de algo feito com amor e dedicação, mas há o contraponto de que se a fotografia não cumpriu seu papel fundamental, o prêmio perde significativamente sua importância. Um reconhecimento abre novos horizontes de trabalhos, sim, mas há que refletir sobre as fotos que ficam, e não somente nas que estarão por vir.


DOC: Qual a sua visão quase de estrangeiro da produção fotográfica brasileira atual? 
ML: Difícil dizer, quase não consigo ver como gostaria… Mas, gosto muito do Felipe Dana. Já estivemos juntos na rua e isso contribui para entender o trabalho de um amigo. Por outro lado, acho importante observar outros campos de produção. No Brasil, João Castilho e Tuca Vieira possuem uma obra consistente e rica. São admiráveis. E há uma boa safra de novos fotógrafos, uma consequência natural. A questão da evolução está em se dedicar a adquirir múltiplos conhecimentos, fora e dentro do campo das artes, aprender outros idiomas e lembrar que a fotografia precisa dizer algo sobre você. Agora, jamais passar horas inúteis constantemente em ‘Fakebook’ e Instagram, o ápice da futilidade contemporânea. Isso tende a contribuir profundamente para o analfabetismo visual. É preciso lembrar que havia vida real antes de redes sociais.